No dia 10 de abril de 2024, o plenário do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 252/2023 (PLP 252/23), que altera a Lei Complementar nº 182/2021, o Marco Legal das Startups. O projeto de lei tem como objetivo instituir um novo instrumento jurídico para viabilizar investimentos em Startups1, o CICC – Contrato de Investimento Conversível em Capital Social. A ideia é dar ao mercado de startups uma alternativa ao contrato de mútuo conversível em participação societária.
Atualmente, no Brasil, o contrato de mútuo conversível em participação societária é uma das principais ferramentas para realização de investimentos em Startups, assim como as convertible notes, nos Estados Unidos da América, antes do advento do Safe Agreement for Future Equity – SAFE, invenção da YCombinator, uma das maiores aceleradoras do mundo.
O mútuo conversível tem como principais vantagens o maior dinamismo para a realização do investimento (diferente dos procedimentos necessários para um aumento de capital ou emissão de títulos de dívida regulados) e a proteção do investidor-mutuante frente à responsabilização como sócio (mesmo que limitada), principalmente quanto aos riscos trabalhistas e fiscais do negócio investido.
No cenário brasileiro, em geral, o mútuo conversível possibilita uma outra vantagem, um menor custo da dívida em comparação às opções existentes no limitado cenário bancário nacional. Sem dúvida, é um instrumento criativo que usa o típico contrato de mútuo previsto nos artigos 586 e seguintes do Código Civil com um teor saliente de atipicidade, possibilitando a conversão do crédito em participação societária, superadas as condições precedentes (suspensivas) acordadas entre as partes.
Caso, no futuro, o sucesso esperado do negócio não seja atingido, ou algumas das condições acordadas não sejam superadas, o débito poderá ser cobrado da investida-devedora ou o investidor-credor poderá optar por perdoar o débito. Assim, o mútuo conversível em participação societária seria um contrato “híbrido” com natureza de “quasi-equity”2.
Entretanto, a ferramenta tem seus problemas. O primeiro deles são os juros, que apesar de, em geral, serem menores que os oferecidos pelos bancos, oneram a investida-devedora. Além disso, quando o investidor-mutuante for uma pessoa jurídica, a “parcela” de natureza de dívida do instrumento atrairá para a operação o custo tributário do imposto sobre operações financeiras – IOF.
Outro problema refere-se ao custo tributário que poderá surgir no momento da conversão nos casos em que as investidas forem sociedades limitadas. O eventual ágio (decorrente da emissão de quotas com valor econômico superior ao valor nominal) será tributado como se receita não operacional fosse, tributação essa que poderá atingir uma alíquota de 34% (trinta a quatro por cento) sobre o valor do ágio. Vale dizer que a mesma tributação ocorrerá caso o investidor-credor perdoe a dívida, pois o fisco federal compreende o passivo extinto sem contrapartida no ativo ou patrimônio líquido como uma receita tributável.
Outra circunstância não menos incômoda do mútuo conversível, também originada de sua natureza de dívida, é o fato de o investidor-credor poder cobrar o valor aportado (as vezes, mesmo diante do sucesso do negócio), o que desvirtua em grande medida o espírito do negócio, afastando o “skin in the game” que muitas vezes é esperado de quem opta por investir num negócio inovador, nascente e, portanto, com um nível maior de risco.
O Projeto de Lei Complementar nº 252/2023 propõe a inclusão do contrato de investimento conversível em capital social, o CICC, no rol do §1º do artigo 5º do Marco Legal das Startups, que delimita quais instrumentos poderão ser utilizados para a realização de aportes em Startups, sem que tal aporte seja integrante do capital social da empresa. O PLP propõe também a criação do artigo 5º-A, que detalhará melhor o CICC, além de propor uma modificação no inciso I do artigo 8º do Marco Legal das Startups. O instrumento proposto, claramente inspirado no SAFE, pode vir a ser uma alternativa interessante ao mútuo conversível.
O CICC, assim como o mútuo conversível, dá ao investidor a proteção contra os riscos trabalhistas e fiscais da investida, pois os parágrafos 1º e 2º do artigo 5º do Marco Legal das Startups deixam claro que o investidor não será considerado sócio proprietário de participação no capital da investida até que seja efetivada a conversão.
Uma das vantagens do CICC frente ao mútuo conversível é que o instrumento não terá natureza de dívida, ou seja, será um “real quasi-equity”. Como é possível ver no texto do §1º do art. 5º-A proposto, esse contrato “possui natureza de instrumento patrimonial, não representando um passivo para a startup tampouco um crédito líquido, certo e exigível para o investidor”, ou seja, deverá ser reconhecido como um instrumento patrimonial, mesmo antes da conversão, sem atrair para o investidor as responsabilidades e obrigações de sócio proprietário de participação no capital.
Importante dizer que o PLP 252/23 não deixa espaço para manobra, pois esclarece que o CICC não poderá ter caraterísticas de dívida, como é possível ver na redação proposta para os §§ 3º e 4º do art. 5º-A que dispõem que “O CICC não terá o seu valor atualizado”3 e “O CICC não renderá juros ou outra forma de remuneração ao seu titular”4, respectivamente. Ademais, o fato de não se tratar de um instrumento de dívida, afasta a incidência do IOF-Crédito em qualquer situação.
Outra vantagem concedida ao CICC frente o mútuo, na forma proposta no PLP, é a maior segurança jurídica quanto ao tratamento tributário da operação. O projeto originalmente proposto era ousado e dava ao então §3º do art. 5º-A a seguinte redação:
“Não produzem quaisquer efeitos tributários para o investidor ou para a startup: I – a extinção do CICC; ou II – ajustes requeridos pela legislação comercial ou contábil, para atualização do saldo do CICC até a sua extinção.”5
Percebendo a exagerada amplitude do texto e os possíveis riscos para o êxito do projeto, o relator em seu parecer propôs a exclusão do texto original do §3º e a inclusão de um novo parágrafo destinado a tratar de forma direta a tributação do eventual ganho de capital do investidor (§10 do art. 5º-A proposto), além de detalhar os aspectos contábeis e fiscais do instrumento (§§ 5º, 7º e 8º do art. 5º-A proposto).
O §10 determina que o ganho de capital eventualmente apurado pelo investidor só ocorrerá no momento da alienação (da participação ou do CICC), afastando a apuração de ganho no momento da conversão do aporte em participação societária. Já o §5º esclarece que o valor de aporte realizado pelo investidor, por meio do CICC, deverá ser utilizado como “como custo de aquisição da participação adquirida, em decorrência da conversão do CICC em capital social da startup”. Assim, a base de cálculo para a eventual tributação sobre o ganho de capital do investidor, deverá ser obtida pela subtração do montante aportado do valor da alienação (de participação ou do próprio CICC) realizada. O texto proposto (§6º do art. 5º-A) reforça que no momento da conversão o investimento deverá ser reconhecido à conta de capital da investida e possibilita a alocação de parte do valor em reservas de capital.
Em contraste com mútuo conversível, o investidor que optar pelo CICC não poderá exigir a devolução do valor aportado, tendo como saída a conversão ou perda do valor. A perda do valor investido poderá ocorrer em duas situações, dissolução da Startup ou “pela perda do direito do investidor à aquisição de participação no capital social da startup nas demais hipóteses previstas no contrato”, como descrito no inciso III do §6º do art. 5º-A. Em ambas as situações, o PLP 252/23 afasta a incidência de tributação sobre a receita ao determinar que os valores aportados “não serão exigíveis pelo titular a qualquer título e deverão ser destinados às contas de capital próprio da startup”6.
O Projeto de Lei propõe também a modificação do texto do inciso I do artigo 8º7 do Marco Legal das Startups, que passaria a ter a seguinte redação:
Art. 8º O investidor que realizar o aporte de capital a que se refere o art. 5º desta Lei Complementar:
I – não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, sem prejuízo da atribuição de outros direitos ao investidor, conforme pactuação contratual; […] (grifo nosso)
A proteção do investidor frente aos riscos operacionais da Startup investida é uma das consequências do fato de não ser reconhecido como sócio proprietário da empresa em questão, porém há o “outro lado da moeda” em que o investidor não tem (e nem pode ter) gerência direta no negócio nem diretos políticos inerentes à participação societária.
Assim, é possível afirmar que o investidor (seja por meio do mútuo conversível ou, futuramente, por meio do CICC) que atuar como sócio, exercendo direito de voto e ou de gerência no âmbito da investida, poderá ser reconhecido como tal por terceiro, bastando a comprovação.
Além do desrespeito ao disposto no inciso citado, o teor do artigo 987 do Código Civil8 é claro quando possibilita ao terceiro provar, de qualquer modo, a existência de uma sociedade em comum, hipótese que seria desastrosa para o investidor – que tem como intenção justamente afastar seu reconhecimento como sócio daquele empreendimento.
O problema seria ainda maior, pois, sendo uma sociedade em comum, ou seja, não personificada, o investidor, agora sócio, não terá nem mesmo a proteção da limitação de responsabilidade.
A ênfase dada na legislação de startups e mantida no texto proposto é perfeitamente compreensível, pois tem sustentação em princípios fundantes do direito, a boa-fé objetiva, a vedação ao benefício decorrente da própria torpeza e a vedação ao comportamento contraditório. Assim dizendo, realizou aporte como sócio e tem direitos de sócio, sócio é.
Entretanto, não podemos negar que todo e qualquer investidor, mutuante ou não, só irá realizar um aporte caso tenha ferramentas confiáveis para proteger seu patrimônio. Algum poder de gerência sobre o investimento e a possibilidade de influência na tomada de decisões relativas ao negócio investido, são, sem dúvidas, armas suficientes para tranquilizar qualquer investidor.
Neste ponto, a inclusão feita pelo PLP 252/23 é sim uma evolução, tímida, mas uma evolução. A expressão esclarece que o instrumento utilizado para a realização do aporte poderá dar ao investidor direitos (que não direitos de sócio) que poderão ser usados em benefício de seu investimento.
Alguns exemplos de direitos que podem ser concedidos ao investidor, sem muito risco, são o acesso (quanto maior melhor) às informações e dados econômicos e financeiros da investida, proteção contra conflito de interesses e cláusula de antidiluição.
O Projeto de Lei Complementar nº 252/2023 é um passo acertado na direção de um melhor ambiente de negócios em nosso país. A oportunidade poderia ser utilizada para mais avanços, mas num cenário tão confuso, incerto e nebuloso como o brasileiro, com seu circo tributário, insegurança jurídica, trapalhadas econômicas e sede arrecadatória do fisco, tudo que dê alívio, mais segurança jurídica e clareza para quem investe e empreende, mesmo que pouca, é lucro.
O projeto segue para revisão da câmara e, caso seja aprovado sem alterações, partirá para a sanção presidencial.
Para mais esclarecimentos, toda a equipe do NMBM – Nankran Mourão Brito Massoli está à disposição.
Thiago Faria de Souza