Em 19 de dezembro de 1995, o direito desportivo viveu um momento histórico que mudou para sempre as relações entre clubes e atletas. Fora das quatro linhas, uma virada marcante aconteceu: Jean-Marc Bosman venceu na justiça e garantiu o direito de rescindir seu contrato com o RFC Liège, da Bélgica, iniciando uma verdadeira revolução no esporte. 

Tudo começou com uma proposta de renovação contratual feita a Bosman, que incluía uma significativa redução salarial.  Insatisfeito, ele buscou transferir-se para um clube da França, mas o acordo não avançou. Apesar de não haver contrato vigente, o RFC Liège exigiu uma indenização para liberá-lo, inviabilizando a negociação. 

Isso deixou Bosman sem alternativas, levando-o a recorrer à justiça em defesa do seu direito de trabalhar. Após quase 5 anos de litígio, o acórdão foi proferido pelo Tribunal Europeu. 

Em resumo, a decisão determinava que um jogador poderia deixar o clube ao qual estava vinculado ao término do contrato, sem que este recebesse qualquer compensação.  Além disso, permitia ao atleta firmar um pré-contrato com outro time assim que faltassem seis meses para o fim do vínculo, também sem necessidade de ressarcimento. 

Mas Bosman pagou um preço alto pela sua luta. Depois da decisão, só atuou em clubes pequenos e de pouco prestígio. Embora nunca tenha sido comprovado, algumas pessoas sugerem que ele foi vítima de um boicote dos grandes da Europa, tendo em vista que a decisão que lhe foi favorável custou caro aos cofres dos times europeus. 

A Lei Bosman mudou completamente a forma como os clubes e atletas se relacionavam e contratavam. Renovações de contrato passaram a ser negociadas um ou dois anos antes do fim dos mesmos e multas rescisórias atingiram patamares, literalmente, bilionários. Tudo isso para evitar que os jogadores pudessem deixar o time do dia para a noite sem que recebessem a compensação necessária. 

Ainda no contexto das multas rescisórias, recentemente, em 3 de outubro de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu uma decisão que pode, de novo, mudar os rumos das negociações do futebol mundial. 

Lassana Diarra, foi um meio campista que, entre outros times, defendeu Real Madrid, Chelsea, Paris Saint-Germain e a Seleção Francesa.  Mas foi durante sua passagem pelo Lokomotiv Moscou, em 2014, que Diarra manifestou sua discordância quanto a redução de seu salário e, poucas semanas depois, descobriu que seu contrato com o clube russo havia sido rescindido. 

Sem acordo entre ele e o Lokomotiv, o jogador levou o caso a justiça, mais especificamente, ao corpo judicial da entidade máxima do futebol, a Fédération Internationale de Football Association, a FIFA. No artigo 54 de seu estatuto, está previsto o Tribunal do Futebol, órgão decisório referente às disputas relacionadas ao futebol e as suas regulamentações. 

O Tribunal do Futebol é composto pela Câmara de Status de Jogadores, pela Câmara de Agentes e pela Câmara de Resolução de Disputas, conforme estabelecido nos artigos 22, “a”, “b” “c” e 23, §1, do Regulamento de Status e Transferências de Jogadores (RSTP na sigla em inglês). Contra as decisões da Câmara de Resolução de Disputas, cabe recurso para a Corte Arbitral do Esporte (do inglês Court of Arbitration for Sport, também conhecido pela sigla CAS, ou Tribunal Arbitral do Esporte, do francês Tribunal Arbitral du Sport, também conhecido pela sigla TAS). 

O Lokomotiv alegava que Diarra não cumpriu seu contrato e por isso deveria pagar uma indenização. Já Diarra argumentava que as atitudes do Lokomotiv afetaram sua carreira, pois a possibilidade de custeio do pagamento da dívida afastaria possíveis interessados.  

Após percorrer todas as instâncias, a decisão final não reconheceu a rescisão e determinou, com base no art. 17 do Regulamento de Status e Transferências de Jogadores, que Diarra pagasse uma indenização de € 10.500.000,00 (dez milhões e quinhentos mil euros) ao Lokomotiv. Ainda de acordo com o referido artigo, qualquer clube que contratasse Diarra ficaria solidariamente responsável pelo pagamento da dívida. 

Com a derrota, o atleta questionou a decisão perante o Tribunal de Justiça da União Europeia. A alegação era, em resumo, de que o art. 17 do RSTP fere as normas da própria União Europeia.  Ele argumentava que, em casos de rompimento de contrato sem justa causa, a FIFA não poderia impedir um jogador de trabalhar para outro clube, pois isso resultaria em uma sanção disciplinar incompatível com as normas europeias. 

Vale a pena destacar os seguintes trechos do acórdão, traduzidos livremente a partir do texto original, começando pelas considerações elaboradas: 

Em primeiro lugar, o jogador profissional parte de um contrato de trabalho, que se resolve sem justa causa, e o clube que o contrata logo na sequência, é solidariamente responsável pelo pagamento da indenização para o que anteriormente empregava o jogador; 

Em segundo lugar, caso a contratação ocorra durante um determinado período que sirva para proteger o antigo clube do atleta contratado, o contratante será punido com transfer ban, a menos que prove que não incitou ou, de qualquer forma, não deu causa a rescisão do contrato anterior do atleta que foi contratado. 

Em terceiro lugar, o objetivo das normas discutidas é assegurar a regularidade das competições de futebol interclubes, mantendo um certo grau de estabilidade nos plantéis dos clubes de futebol profissional. 

A partir dessas considerações, o acórdão do processo C-650/225 concluiu que não existia “possibilidade de interdição de transferência, inscrição por um novo clube contratante de um jogador, por este não ter quitado solidariamente os valores da cláusula indenizatória do vínculo contratual anterior extinto”. 

Ou seja, ainda que o contrato seja rescindido sem justa causa e cabendo o pagamento da multa rescisória ao atleta, a ausência de pagamento da multa não pode ser um empecilho para que o jogador de futebol exerça, regularmente, sua profissão, especialmente por se tratar de uma profissão na qual a carreira é notadamente curta e que esse tipo de abuso pode levar a aposentadoria precoce de atletas. 

As consequências dessa decisão ainda serão testadas na prática, à medida que clubes, jogadores e as federações, incluindo a FIFA, se adequem ao que foi decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.  O potencial de mudança que ela carrega é tão significativo que, assim que foi publicada, a FIFA anunciou que analisará o art. 17 do RSTP. 

No entanto, é possível projetar alguns questionamentos gerados por ela. 

Outros jogadores que passaram por casos semelhantes poderão buscar compensação pelas perdas que sofreram? Clubes perderam força nas negociações? Os atletas ganham mais força para negociar seus contratos? Os clubes que têm como padrão comprar e vender jogadores para incrementar suas receitas terão segurança jurídica suficiente para manter sua forma de atuação no mercado? 

Porém, a mais relevante das questões que surge é: se esse tipo de rescisão ficará sem punição, pois caso não haja nenhum tipo de sanção, clubes e atletas poderiam, simplesmente, ignorar os contratos em vigor? 

A FIFA terá que responder a esses questionamentos com a maior brevidade possível. A primeira medida foi oficializar a suspensão de todos os processos em curso, de treinadores e jogadores, que versem sobre a rescisão unilateral de contratos em casos semelhantes ao caso Lassana Diarra x Lokomotiv Moscou. 

Na prática, a FIFA determinou que o art. 17 do RSTP não é mais aplicável em sua atual redação, e que as rescisões sem justa causa que ocorrerem até a adequação do artigo não poderão resultar em sanções esportivas ou financeiras. 

A segunda medida foi abrir um canal de comunicação. Por meio de um pronunciamento de seu diretor jurídico, Emilio García Silvero, comunicou que a entidade está abrindo espaços de diálogo com os diversos interessados, especialmente os chamados stakeholders do futebol que em teoria são quem mais tem a perder, para fins de adequar o atual sistema do art. 17 do RSTP à lei europeia. 

Mas o depoimento foi uma faca de dois gumes, pois, após afirmar que a FIFA estava aberta ao diálogo, o diretor ressaltou, nas entrelinhas, que a chance de mudanças drásticas é pequena.  Isso porque a FIFA jamais teve sua posição de reguladora do mercado mundial do futebol questionada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e que as compensações financeiras em caso de quebra de contrato sem justa causa, seja por parte do jogador ou do clube, continuarão existindo. 

O caso Diarra tem tudo para, assim como a Lei Bosman, revolucionar o futebol mundial fora das quatro linhas, especialmente no tocante à governança e aos contratos de trabalho de atletas.

João Pedro Louzada Gonçalves