Os últimos meses marcaram o exponencial crescimento de divulgação das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que afastaram o reconhecimento de vínculo de emprego proferido pelos tribunais regionais do trabalho.
Com fulcro nas teses vinculantes firmadas nos julgamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 324 e do Recurso Extraordinário nº 958.252, na qual firmou-se o tema nº 725 de repercussão geral, a Suprema Corte reiteradamente tem pontuado a validade de contratos que envolvem a força de trabalho remunerada regidos por ordenamentos distintos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Isto é, não é porque a relação envolve a utilização de mão de obra remunerada que necessariamente se trata de vínculo celetista, já que a relação de emprego depende essencialmente da cumulação dos requisitos previstos no artigo 3º da CLT, sem os quais, o reconhecimento de vínculo empregatício representa inobservância do princípio constitucional da legalidade.
O advento da globalização e o constante surgimento de novas tecnologias, que diminuem a distância entre diversos entes do mercado de trabalho, além de possibilitar a maior capacitação de profissionais, permitiu a exploração de novos modelos de contratos que envolvem a prestação de serviços, aumentando a liberdade dos contratantes no que diz respeito às modalidades de contratação e regras legais para vigência dos instrumentos contratuais.
Pois bem, considerando as mutações da sociedade, do mercado e das empresas, tanto no âmbito social, quanto econômico, o Direito do Trabalho se obriga a se adaptar aos novos modelos de organização, de modo que os conceitos tradicionais e genéricos não bastam para a análise da realidade fática.
Na prática, isso significa que, se há alteração nas relações de trabalho, é impossível que o regime jurídico trabalhista seja rígido e imutável, de forma que as diferenças entre as modalidades de prestação de serviços e entre os próprios trabalhadores devem ser observadas para garantir a tutela efetiva de seus direitos.
Mesmo porque, a proteção trabalhista generalizada – que pressupõe a hipossuficiência imediata da pessoa física que presta serviços remunerados – e não reconhece as diferenças entre os diversos modelos de trabalho existentes, não é suficiente para dirimir os conflitos atualmente inseridos na esfera jus laboral.
A doutrina moderna corrobora este entendimento ao afirmar que o princípio da proteção do Direito do Trabalho deve ser relativizado quando se verifica a inexistência de hipossuficiência no ente que presta os serviços remunerados.
Nesse ponto, apesar da prerrogativa estatal de fiscalizar as matérias relativas ao trabalho, o poder do Estado não pode se sobrepor à vontade expressa dos contratantes que firmaram uma relação de prestação de serviços em modalidade distinta do vínculo empregatício, sob pena de afrontar princípios constitucionalmente garantidos.
As decisões moduladas pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente nas Reclamações Constitucionais apresentadas por empresas que exploram as mais diversas atividades econômicas, ilustram bem a necessidade de adequação dos conceitos trabalhistas à realidade fática de cada trabalhador.
Importante ressaltar que, supor que profissionais qualificados e experientes tenham tido direitos trabalhistas fraudados, simplesmente porque escolheram forma distinta de organização do seu trabalho, é afrontar o direito à livre associação e auto-organização de sociedades, bem como, a ordem econômica fundada na livre iniciativa, o que é constantemente pontuado nas decisões da Suprema Corte.
Especificamente quanto esta temática, o instituto da Reclamação Constitucional permite que o Supremo Tribunal Federal seja acionado para garantir autoridade de decisão proferida pela Corte no que tange ao reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação clássica disposta na regra celetista, isto é o contrato de trabalho.
Nessa seara, cite-se a decisão que julgou procedente a Reclamação nº 59.836/DF, na qual o Ministro Roberto Barroso delibera que, para apurar a existência de fraude na contratação e prejuízos ao trabalhador, é necessária prova inequívoca de coação da contratação da prestação de serviços, bem como, a hipossuficiência do prestador de serviço, sem os quais, não há qualquer indício de ilicitude de contratação do agente em modelo distinto do regramento celetista.
E mais, decisões como esta apontam a ausência de imposição de organização das sociedades pela Constituição Federal, que pelo contrário, promulgou os princípios da livre iniciativa e livre concorrência, que não podem ser mitigados pelo Poder Público sem que haja fundamentos hábeis para tanto.
É o que se verifica na decisão da Reclamação Constitucional nº 56285/SP, também relatada pelo Ministro Roberto Barroso, na qual houve disposição expressa da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação clássica disposta na regra celetista, tais como de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica.
Isto, é claro, desde que a contratação tenha sido firmada sem vícios na manifestação de vontade e que a relação entre as partes se concretize com a ausência dos requisitos do artigo 3º da CLT, principalmente no que se refere à subordinação jurídica.
Interessante observar que a conduta do STF tem se estendido à relação havida entre plataformas de aplicativos e trabalhadores, certo é que nos últimos meses diversas decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho foram reformadas para afastar o vínculo inicialmente reconhecido entre as partes, através do fenômeno popularmente chamado de “uberização”.
Nesse caso, pontuam as decisões que a relação entre empresas de aplicativos e os prestadores de serviços configuram novo modelo de trabalho, capaz de gerar autonomia, aumento de empregos e renda, certo de que tal entendimento pode ser aplicado em diversos casos que envolvem aplicativos de fornecimento de alimentos e outros bens de consumo.
Em suma, a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal destaca o inevitável ajuste da Justiça do Trabalho às mutações da organização jus laboral, para que o intuito protetivo do direito do trabalho não seja desvirtuado em intervenção desnecessária do poder estatal nas relações privadas nas quais devem prevalecer os princípios da livre organização, autonomia e liberdade econômica.
Não se pode olvidar que a Suprema Corte, ao apreciar o tema da terceirização das atividades fins das empresas, que deu origem ao debate sobre a licitude de outros modelos de contratação da força de trabalho remunerada, decidiu que a Constituição autoriza que a empresa adote estratégias na organização do trabalho que busquem a minimização de gastos e a maximização do interesse econômico.
Na prática, as decisões do STF refletem a modernização do entendimento jurisprudencial, que considerando as alterações na organização social e econômica do mercado de trabalho, há valorização da autonomia e liberdade contratual envolvidas nas relações de trabalho, com extrema importância da realidade fática, sem que os conceitos tradicionais sejam impeditivos para o acolhimento de modelos distintos daqueles regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho.
É inegável que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Reclamação Constitucional, que afastam o reconhecimento de vínculo empregatício proferido pelos tribunais regionais, têm incitado debate entre juristas, doutrinadores e os próprios trabalhadores afetados.
Não há, contudo, que se falar em precarização do vínculo empregatício, já que a proteção oferecida pelo Direito do Trabalho não foi relativizada nos casos nas quais há inequívoco preenchimento dos requisitos do artigo 3º da CLT.
Ao contrário, já que o reconhecimento da licitude de formas distintas de organização do trabalho, tem condão de evitar decisões genéricas e descaracterizar a proteção estatal aos direitos de trabalhadores hipossuficientes.
Para mais esclarecimentos, toda a equipe do NMBM – Nankran Mourão Brito Massoli está à disposição.
Anna Letícia de Paula Angelo Oliveira